O texto contém um pequeno spoiller no final. Aos que se incomodam, recomendamos a leitura após assistirem ao filme.
Junto com Lucrecia Martel, Pablo Trapero é o mais amplamente conhecido nome do chamado “nuevo cine argentino” – grupo de cineastas surgido a partir dos anos 90, em geral saídos das escolas de cinema do país e lidando de forma bastante direta com aspectos da realidade argentina num período de muitas mudanças e crises sócio-econômicas. No entanto, se Martel lançou até hoje apenas três longas, todos eles bastante similares em termos de universo estético e de narrativa, Trapero tem sido bem mais prolífico:
O clã é seu oitavo longa, e marca de forma inegável sua passagem de uma linguagem mais próxima do registro documental/realista de suas origens para um cinema ficcional que se apropria de uma série de ferramentas bastante típicas de um cinema mais “popular”, em vários sentidos do termo – inclusive no fato de que se tornou o segundo filme argentino mais visto nos cinemas em todos os tempos, logo depois de
Relatos Selvagens.Ainda que não haja como não notar a mudança do escopo do cineasta entre sua estreia em longas com
Mundo Grua em 1999 (cinema baratíssimo, feito com equipe de amigos e linguagem naturalista ao extremo) e este filme (alto orçamento, filme de época com um dos mais populares atores argentinos, coprodução internacional com os irmãos Almodóvar e a Fox International), é interessante notar como a realidade social argentina segue como o pano de fundo onde Trapero gosta de trafegar. Embora se utilize da roupagem do “filme de crime”, particularmente numa linhagem que dialoga com os filmes de máfia de Martin Scorsese, já a partir das primeiras cenas, que reproduzem imagens da TV argentina do período do começo dos anos 80, Trapero deixa claro que quer pensar particularmente sobre as marcas do período da ditadura no país.
A maneira como escolhe fazer isso é através da história de uma família que, ainda que absolutamente excepcional, também é “uma família como outra qualquer”. Por isso, mais do que se debruçar sobre algum traço desumano ou psicopata dos personagens, Trapero buscar realçar a rotina ordinária em torno dos acontecimentos horrendos que narra: os jogos de rúgbi do filho, os jantares em família etc. Essa história, nos indica ele, não é a história apenas dos Puccio, mas sim de como um país opta por fingir não ver o que se passa nos seus porões enquanto mantém a superfície da sua normalidade social intacta. Nesse sentido, é importante ver como o personagem do filho que vai embora representa, segundo Trapero, um resquício de reserva moral, daquele que não consegue mais virar a cara para o outro lado. Que essa reserva moral escolha fugir ao invés de confrontar seu entorno talvez nos revele muito da Argentina naquele momento. E, também talvez, não só dela.
Eduardo Valente
É ex-aluno do curso de cinema da UFF, tendo editado as revistas de cinema Contracampo e Cinética. Assíduo frequentador do Cine Arte UFF, escreve a partir dessa semana alguns textos de introdução à reflexão sobre alguns filmes de nossa programação por acreditar que a formação de plateia é das maiores missões que um cinema como esse pode cumprir.