Já no primeiro plano de Filho de Saul, Nemés deixa bem clara a regra do jogo que propõe como aproximação do tema do Holocausto: buscar filmar não os campos de concentração a partir do pressuposto de poder totalizar essa experiência, mas sim filmar um ponto de vista radicalmente pessoal, de um personagem nesse ambiente. A escolha do formato quadrado da tela (que limita os pontos de escape) e do foco bastante fixo no corpo de seu personagem, filmado quase sempre de muito perto, junto com o uso do som fora de quadro buscam recriar esteticamente um sentido do grau de loucura, perda de controle/perspectiva e desespero do que seria estar fadado a um local como esse. Assim, na mesma medida em que Saul não consegue enxergar como sair do papel cruel que é levado a jogar (servir aos seus algozes como única forma de ficar vivo), o espectador é igualmente aprisionado pela opção estética radical que o filme toma.
No entanto, na medida em que a narrativa avança, não é fácil para o filme sustentar suas escolhas. Enquanto se arma à volta do personagem uma rebelião e tentativa de fuga, o foco na obsessão alienante do protagonista (que busca alguma redenção através de um ato desesperado), reforça sua dimensão de um personagem alienado, incapaz de se posicionar, mas apenas reagir. No entanto, e talvez de forma inevitável, é no campo das opções estéticas que Nemés realmente encontra seus eventuais becos sem saída. Porque, ao mesmo tempo que seu filme afirma um desejo de não totalizar (negando-se a filmar algumas das “imagens interditas” para a ficção, como câmaras de gás, fogueiras de corpos, etc), o seu extremo cuidado técnico na recriação dos mesmos no fora de campo (seja pelo som, seja em imagem ao fundo e fora de foco) tem algo de exibicionista, chamando mais atenção para como se filma do que para o que se decide filmar (ou não). No limite, seria honesto imaginar possível “colocar o espectador” (sentado numa sala de cinema bem condicionada) no lugar de uma vítima do Holocausto, como parece tentar fazer? Haveria nessa catarse algum tipo de efeito para além do “maravilhamento”? Perguntas para o espectador se colocar.
Com Charlie Kaufman, ainda que certamente em chave de gravidade bem menor, os dilemas do criador sempre passaram pelas arbitrárias construções de sistemas aprisionantes nos quais seus personagens principais eram colocados. Desde sua estreia hiper premiada como roteirista de cinema em Quero Ser John Malkovich (1999), essa é a marca maior dos universos propostos por Kaufman: para além de suas “excentricidades”, a maneira como é essencial para ele criar “sistemas” cujas regras, uma vez postas, desenham um trajeto labiríntico com algo de areia movediça: quanto mais seus protagonistas se debatem, mais parecem afundar.
Não é outra a história de Michael Stone, personagem que parece tão aprisionado em meio a uma viagem de trabalho quanto Saul no campo de concentração. Para acreditar plenamente na empatia de Stone e sua prisão é preciso acreditar nas premissas desse universo que propõe Kaufman: a de que os humanos podem ser tão intercambiáveis quanto vozes na dublagem de um filme animado, e de que o cotidiano possa alienar ao ponto de todos à sua volta se tornarem versões de uma mesma pessoa (menos você mesmo – diverso e único). De fato, nesse sentido Anomalisa parece uma tardia chegada do seu criador ao universo da animação com bonecos. Afinal, em algum sentido, todos os seus personagens anteriores tinham um tanto de marionetes nas mãos de seu criador. Que uma cena de sexo entre bonecos seja, então, a mais humana de suas criações até aqui parece algo incrivelmente adequado.
É ex-aluno do curso de cinema da UFF, tendo editado as revistas de cinema Contracampo e Cinética. Assíduo frequentador do Cine Arte UFF, escreve alguns textos de introdução à reflexão sobre alguns filmes de nossa programação por acreditar que a formação de plateia é das maiores missões que um cinema como esse pode cumprir.