Verão 1993 e Jovem Mulher

Desde aspectos formais e de suas narrativas, passando por características de suas realizações, e chegando a detalhes sobre suas trajetórias internacionais, existe bastante em comum entre Verão 1993 e Jovem mulher, filmes que chegam juntos ao circuito do Cine Arte UFF. Começamos pelo último ponto: ambos são filmes que estrearam em mostras paralelas dos principais festivais de cinema do mundo (Berlim no primeiro caso, Cannes no segundo), dos quais saíram com o prêmio de melhor longa de estreante. Se isso já nos revela também que ambos marcam uma primeira realização em longas, ainda mais relevante é que sejam os dois dirigidos por cineastas mulheres. E assim, finalmente, chegamos ao que há de mais importante na possibilidade de assistir com alguma proximidade ambos os filmes: a forma como se colocam muito grudados em suas protagonistas femininas, em narrativas que transcorrem em um período curto e determinado de tempo de suas vidas, marcado por uma grande perda que leva à necessidade da reinvenção de suas identidades. De fato, ambos os filmes iniciam-se no momento imediato consecutivo à tal “perda original” em suas narrativas, sem que nos seja dado conhecer nada na tela antes desse momento. Tudo que saberemos sobre as personagens e sobre o seu passado virá a nós pelo filtro do presente que se segue ao trauma, que é por onde entramos nos filmes – e aí podemos começar a tratar das diferenças entre os dois, que também são significativas.

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Começando, talvez, pela mais óbvia: a protagonista de Verão 1993 é uma criança (ainda que se possa argumentar que o termo “jovem mulher” poderia ser bastante adequado a muito do que passará ao longo do filme). Essa condição etária é parte essencial do que de mais importante se passa ao longo desse filme, que a princípio poderia ser apenas “mais um” desses contos exemplares acerca do amadurecimento forçado e precoce de uma criança mostrado pelo cinema (os exemplos são inúmeros, e em breve mais um belo filme virá se somar à lista no circuito dos cinemas no Brasil, Sem fôlego, de Todd Haynes). O que diferencia Verão 1993 de vários desses exemplares (não apenas, aliás, do cinema focado em crianças) é a maneira como recusa a Frida, sua protagonista, o papel exclusivo de vítima das circunstâncias muito duras que a cercam. A Frida é dado o direito de ser também profundamente antipática e cruel, porque afinal não é da natureza dos seres humanos serem monocromáticos, nem mesmo no sofrimento (ou muito menos nele). Como é típico das crianças, Frida não tem ferramentas para lidar com aquilo que se passa ao seu redor, e muito menos dentro dela (e aqui nesse filme essa expressão pode ser usada tanto biológica como emocionalmente). Ela age e reage dentro do que lhe é possível a cada momento, e nesse trajeto causa e sofre tanta dor como alegria. Carla Simón, a diretora do filme, objetiva nos fazer testemunhar todos esses momentos, muitas vezes contraditórios, contando para isso com um trabalho excepcional de direção de atores que busca atingir um naturalismo radical, principalmente de suas atrizes infantis.

Jovem mulher é um filme que não poderia ser mais claro sobre suas regras do jogo desde o primeiro plano: estaremos sempre muito próximos de sua protagonista, Paula, e assistiremos ela tomar decisões e atitudes que não apenas não poderemos entender completamente, como inclusive nos colocarão constantemente em questão sobre a sua validade e correção. Só que o nosso julgamento sobre Paula não é o que realmente importa para Jovem mulher, ao contrário de tantos filmes que fazem questão de nos dizer seguidamente se devemos amar ou odiar seus personagens (e em especial os seus protagonistas). Se alteridade é, hoje em dia, palavra muito fácil de ser vista por aí em textões de Facebook e afins, são poucos os filmes que buscam propor um exercício tão profundo e efetivo desse conceito. Para a diretora, a alteridade se coloca de maneira radical em todos os encontros e trocas que Paula estabelece na tela ao longo da narrativa (e que não raro terminam em confrontos corporais – seja pelo sexo, pela briga, pela brincadeira), mas também é jogada em nossa cara o tempo todo na nossa relação com Paula.

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Pois, se Paula é, de fato, uma “jovem mulher” conforme informa o título, podemos ver que seu domínio das ferramentas para estar no mundo, nesse jogo constante que é a vida em sociedade (que implica em relações familiares, amorosas, profissionais e de amizade com regras bastante estabelecidas a serem seguidas), é tão incompleto quanto o da criança Frida, de Verão 1993. O que a diretora Léonor Serraille tenta nos fazer sentir é que isso não é uma exclusividade de Paula, por mais excêntricas que muitas de suas atitudes e circunstâncias de vida possam parecer para nós. De fato, “Paula, c’est nous” nos parece afirmar o filme – só que nunca através de uma identificação fácil com alguém que se porta de forma simpática e de acordo com o que “se espera” dela, mas exatamente o contrário. Paula é aquilo em nós todos que ainda resiste a se conformar, e questiona exclusiva e repetitivamente: por que, afinal, não podemos fazer diferente? Não por acaso, em ambos os filmes e sem o risco de antecipar nenhum grande segredo, o final é como se fosse um começo: os processos de Frida e Paula não terminam porque eles são os que acompanham os seres humanos do nascimento à morte – descobrir quem são, e uma vez que imaginam que saibam, se questionar tudo de novo.

Eduardo Valente

É ex-aluno do curso de cinema da UFF, tendo editado as revistas de cinema Contracampo e Cinética. Assíduo frequentador do Cine Arte UFF, escreve alguns textos de introdução à reflexão sobre alguns filmes de nossa programação por acreditar que a formação de plateia é das maiores missões que um cinema como esse pode cumprir.

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