O que está por vir

No que parece apenas um detalhe ínfimo durante a curta sequência que serve de prólogo a O que está por vir, a primeira vez que vemos a professora de filosofia Nathalie (Isabelle Huppert) ela está corrigindo um trabalho de algum de seus alunos no alto do qual podemos ler em destaque a questão filosófica: “é possível ver o mundo pelos olhos do outro?”. Aparentemente tão passageira, a aparição dessa pergunta parece dar uma das coordenadas principais para o novo trabalho da cineasta Mia Hansen-Love, que encontra maneiras muito sutis de nos permitir, num filme quase totalmente centrado na experiência da personagem de sua protagonista, experimentar ainda que brevemente esse “olhar do outro” com o qual Nathalie precisa lidar o tempo todo. Já no prólogo vemos isso na câmera que se alonga um pouco mais com a presença do marido dela olhando para o mar do alto da falésia. Esse expediente se repetirá várias vezes ao longo do filme – a cena “acaba”, a personagem de Huppert sai do ambiente, e ficamos um pouco mais com os outros personagens com os quais ela contracena (sua mãe, o ex-aluno, os atuais alunos, até mesmo os profissionais de marketing da editora para a qual trabalha). Ao abrir esses pequenos espaços para que o filme não seja totalmente ligado a Nathalie, a cineasta nos relembra que aquelas outras vidas tocadas pela dela também seguem em frente, com outras perspectivas possíveis para aquilo tudo que vemos.

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O cinema de Mia Hansen-Love encontra sua maior qualidade na capacidade de fazer com que um conceito que poderia soar teórico (como esse de criar um respiro no drama principal para incorporar o tempo e o olhar de outros personagens) chegue na tela de maneira absolutamente orgânica, nunca chamando mais atenção para si do que para os personagens que habitam a sua ficção. Nisso, com certeza, conta com um elenco escolhido a dedo, a começar por uma Isabelle Huppert nada menos do que luminosa. De fato, a Nathalie deste filme pode ser vista como o complemento exato para a Michèle que Huppert interpretou nesse mesmo ano de 2016 no também fascinante Elle, de Paul Verhoeven. Ambas são mulheres realizadas, donas de seus narizes e cheias de ideias sobre o mundo, mas que se veem confrontadas com situações nas quais seu controle sobre o cotidiano (profissional, sentimental, familiar) parece correr o risco de escorrer por entre os dedos. Totalmente diferentes em tom, são personagens que lidam com circunstâncias similares nas suas vidas de mulheres de meia idade na sociedade contemporânea.

Curiosamente, porém, enquanto o filme de Verhoeven assume desde o início na sua forma o artifício mais típico do cinema de gênero, O que está por vir parece apostar num naturalismo que talvez engane o espectador mais desatento a pensar que se trata de um exercício de observação. Mas o que interessa à cineasta é um cinema, de fato, que acredita muito no poder dessa ficção em construir um edifício potente de drama através de uma estrutura que se utiliza sem nenhuma vergonha dos tempos fortes do chamado “romanesco” (ao longo do filme veremos nascimentos, mortes, separações, viagens, manifestações etc). Inegavelmente, uma sinopse que prometesse “um drama sobre uma professora de filosofia lidando com a chegada da meia idade em meio a dilemas nas relações amorosas e familiares” faria o espectador pensar em qualquer termo menos “velocidade e dinamismo”, porém é justamente desses dois itens que Mia Hansen-Love se utiliza na montagem do filme. Sua câmera nunca parece estar parada, as cenas têm cortes abruptos nas suas passagens, as elipses de tempo se sucedem com bastante rapidez. É um desses mistérios da arte do cinema como a diretora mescla essa estrutura dinâmica e extremamente viva com a capacidade de capturar uma série de pequenos momentos e detalhes (olhares, gestos, reações) que emprestam a cada um dos personagens uma profundidade que parece ultrapassar em muito aquilo que eles dizem ou fazem. É um cinema que entende que a forma da ficção se aproximar mais da vida não é tentando mimetizar o tempo dessa, mas sim manipular o seu tempo para criar uma outra realidade – tão, mas tão diferente e ao mesmo tempo com a qual todos podemos nos identificar. Não é coisa simples de se atingir, mas O que está por vir chega lá com precisão.

Eduardo Valente

É ex-aluno do curso de cinema da UFF, tendo editado as revistas de cinema Contracampo e Cinética. Assíduo frequentador do Cine Arte UFF, escreve alguns textos de introdução à reflexão sobre alguns filmes de nossa programação por acreditar que a formação de plateia é das maiores missões que um cinema como esse pode cumprir.

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