Começando por A bruta flor do querer, representante nacional nessa discussão, onde os diretores do filme (Dida Andrade e Andradina Azevedo) interpretam personagens, sendo que o primeiro deles é o protagonista principal. Ou seja, o distanciamento entre autor e obra é quase nenhum, e não é coincidência alguma o fato desse protagonista ser um cineasta aspirante que ainda busca encontrar a melhor maneira de filtrar e direcionar suas energias profissionais, em conjunto com seu desejo sexual e de concretização de um amor platônico. A expressão pessoal e a realização plena aparecem cindidas como objetivo entre a criação artística e a busca por uma completude emocional. Estamos aqui em plena pós-adolescência tardia, na qual a busca do lugar no mundo para uma nova geração se dá num ambiente em que as possibilidades parecem se ampliar (o trabalho pode ser visto como espaço de completude de desejos e não mais apenas como função prática, o amor e o sexo apresentam ampla gama de opções sem precisarem estar ligados ao estabelecimento de um núcleo unificador), sem que com isso estejam garantidos necessariamente maiores certezas sobre esse ampliação trazer consigo a garantia de maior completude. Porém, com as novas tecnologias digitais de realização audiovisual, fazer filmes (inclusive fazer esse longa-metragem em questão) já é possível como resposta, ainda que sem ser um “plano de carreira” (pois feito com recursos próprios ou de apoios pontuais). Alguns desejos, portanto, se realizam, mas as incertezas continuam.
Os personagens de O cheiro da gente estão no outro lado desse dilema jovem atual: ao invés da adolescência tardia, vivem uma antecipação de questões antes adultas para o espaço de seus corpos e desejos ainda imaturos. Circulam a esmo pelas ruas de Paris, em grupos maiores ou menores, lidando com o sexo e com as drogas com grande naturalidade (inclusive, às vezes, como profissionais). No entanto, não se pode dizer que eles dominem de fato essas pulsões, mas sim que talvez sejam dominados por elas de maneiras absolutamente novas em relação a gerações anteriores. Larry Clark, diretor do filme, tem construído uma carreira inteira, primeiro como fotógrafo e depois como cineasta, de retratar essa juventude, seus corpos e pulsões, ao longo das últimas décadas. Realizador do marcante Kids (1995), do alto dos seus hoje 73 anos de idade, Clark parece obcecado, quase vampirescamente, em retirar desses jovens a sua própria energia vital. Em O cheiro da gente, inclusive, Clark aparece pela primeira vez como ator na tela, em papel duplo (ele é o morador de rua sobre os quais os garotos andam de skate logo no começo, mas também é o homem que chupa os dedos dos pés de um dos rapazes mais adiante, numa das cenas mais fortes do filme). Mas para além de sua presença física, Clark também insere um personagem em cena que parece representar uma atualização da sua pulsão de ver e registrar a vivência desses corpos jovens, um garoto que usa seu celular para gravar todas as situações e registrar esse tempo que se esvai. O cheiro da gente é um filme de sensação, muito mais que de narrativa, em que um cineasta de uma outra geração parece tentar “entender” um novo mundo enquanto o registra e eterniza.
Finalmente, em Três lembranças da minha juventude a palavra-chave é “lembrança”. Único dos filmes que se passa em outra época (mais especificamente os anos 80), toda sua narrativa se baseia das lembranças do personagem Paul Dedalus, que aparece no começo do filme na atualidade. Dedalus já era o protagonista (interpretado pelo mesmo Mathieu Amalric desse novo filme) de um outro longa do diretor Arnaud Despleschin, de 1996 (Comment je me suis disputé… ma vie sexuelle), no qual os dilemas do personagem eram similares aos de A bruta floro do querer. Agora, Dedalus volta à cena 20 anos depois, e busca entender seu lugar no mundo (ainda insatisfeito, ainda incompleto) a partir do que considera suas “origens”, pelo menos no quesito emocional e das suas relações com as mulheres, em específico. O filme (e a relação de Dedalus com Esther, sua primeira namorada) segue com a mesma urgência e a mesma “dramaticidade” extrema, típicas dos amores de juventude, mas o tom é sempre o da distância, o da rememoração que procura as chaves para o que aconteceu depois. O filme fecha o círculo dessa relação entre maturidade e juventude, entre quem faz o filme e quem é retratado no filme, mostrando que a distância do tempo, muitas vezes, pode incorporar a saudade e a nostalgia, mas não faz com que as vivências daqueles momentos possam ser necessariamente mais controladas. Em meio à incerteza e à falta de ferramentas para lidar com um entorno que não para de mudar, reforça-se o sentimento de que a juventude, ainda que fugaz e atribulada, marcará de forma indelével os adultos que dali saem, possivelmente não menos confusos e incompletos que suas encarnações anteriores.
É ex-aluno do curso de cinema da UFF, tendo editado as revistas de cinema Contracampo e Cinética. Assíduo frequentador do Cine Arte UFF, escreve alguns textos de introdução à reflexão sobre alguns filmes de nossa programação por acreditar que a formação de plateia é das maiores missões que um cinema como esse pode cumprir.