Mais de 120 anos depois, nos seus melhores momentos o cinema continua capaz de maravilhar o seu espectador, muitas vezes enquanto filma algo de profundamente banal. Os grandes cineastas conseguem unir esses dois sentimentos de mundo: o de se ver algo que nunca se viu, enquanto se vê algo que sempre se viu. O tailandês Apichatpong Weerasethakul é um desses grandes cineastas. Revelado para o mundo em 2002 com o filme Eternamente sua (Sud sanaeha), e definitivamente consagrado com a Palma de Ouro de Cannes em 2010 por Tio Boonmee, Joe (como é chamado para facilitar a vida dos ocidentais que não conseguem pronunciar seu nome) chega agora ao seu oitavo longa com esse Cemitério do esplendor. O filme começa com algumas das chamadas “imagens banais” acima mencionadas: uma mulher chega a uma escola, que no momento faz as vezes de hospital improvisado para um grupo de soldados. Enquanto isso, máquinas de construção escavam a terra no entorno, para, como logo descobriremos, fazer passar por ali cabos de novíssima fibra ótica. Tudo filmado com grande frontalidade, discrição, tranquilidade mesmo.
No entanto, não demora muito para que elementos estranhos se infiltrem no filme: a doença que acomete aqueles soldados, por exemplo, não se deve a nenhuma batalha específica nem a um estresse pós-traumático. Eles apenas caem em sono profundo, quase comatoso, por horas ou mesmo dias, sem maiores explicações. É a partir daí (e de uma série de outros detalhes e personagens que não convém descrever demais, para deixar o espectador descobrir) que o filme avança firmemente rumo a uma mistura de sonambulismo e torpor, propondo improváveis encontros entre estados mentais a princípio inconciliáveis. Sem nunca deixar de lado um registro naturalista e simples com sua câmera e diálogos, o filme vai sendo cada vez mais “encarnado” (a escolha do termo é extremamente importante) pelo espectro do sonho. É difícil dizer onde termina a realidade e começa a fantasia numa terra onde o passado, o mito, o presente e o futuro (as tais fibras óticas, uma terapia cromática que parece saída de uma ficção científica espacial) se sobrepõem sem parar, até o ápice da longa sequência em que duas personagens passeiam por uma paisagem absolutamente “banal” de um parque enquanto descrevem uma outra realidade paralela que teria existido, e ainda assombra, aquelas imagens. Nunca vemos essa outra realidade na tela, mas a vemos plenamente ao mesmo tempo. É dessa natureza a magia do cinema, nos parece dizer o cineasta.
O estreante norte-americano Robert Eggers vem de uma tradição tão distante dessa realidade tailandesa que “Joe” nos mostra, e busca com seu A bruxa mexer com recantos bem diferentes do imaginário de seu espectador. No entanto, é difícil não perceber como partilha de uma mesma crença de seu colega tailandês: a de que filmando o mundo “como ele é” podemos acabar revelando muito mais do que as imagens mostram. Não por acaso, Eggers passou quatro anos pesquisando obsessivamente detalhes sobre a realidade da vida na Nova Inglaterra do século 17, época em que se passa o filme. Ele entendia que a sensação de autenticidade, de colocar o espectador ao lado de seus personagens, era decisiva para causar o efeito que ele busca: o de um horror que, ao mesmo tempo em que se baseia nos mitos e folclores daquele período, se imiscuía nos detalhes do cotidiano de uma realidade profundamente mística e religiosa. Pode-se dizer que nos tempos coloniais norte-americanos a fronteira entre realidade e fantasia, entre projeções e acontecimentos factuais, era tão ilusória e indistinta quanto na Tailândia que Apichatpong filma.
Se Eggers busca trabalhar na chave do horror, o verdadeiro sentimento de inquietude nasce menos das (poucas) imagens efetivamente fantásticas que filma, e muito mais do sentimento opressivo de uma fé castradora que busca explicações sobrenaturais para um mundo natural ainda cheio de mistérios. Esse mundo natural misterioso não se refere apenas à floresta desconhecida (e assustadora por isso mesmo), mas principalmente aos sentimentos humanos. Não por acaso em determinado momento chave do filme o pai da família de camponeses exclama que “eles (seus filhos) não conseguem domar o seu mal natural”. É aí que se encontra o ponto onde o cinema desses dois realizadores tão diferentes se aproxima de forma definitiva: assim como Eggers se obceca com os detalhes da vida (e da linguagem falada) numa cabana do século 17 enquanto cria o sentimento de pavor e sobrenatural em torno da mesma, para Apichatpong, filmar a dimensão física e carnal da realidade em suas “encarnações” mais diretas (um homem que defeca, uma ereção em pleno sono, um defeito físico em uma perna) não se diferencia em nada, muito pelo contrário, de enxergar no cinema uma capacidade inata de “ir além”. E ambos acreditam, 120 anos depois, que o cinema segue capaz de revelar as maravilhas do mundo simplesmente o filmando. E exibindo numa sala escura, para um grupo de pessoas em conjunto partilharem.
É ex-aluno do curso de cinema da UFF, tendo editado as revistas de cinema Contracampo e Cinética. Assíduo frequentador do Cine Arte UFF, escreve alguns textos de introdução à reflexão sobre alguns filmes de nossa programação por acreditar que a formação de plateia é das maiores missões que um cinema como esse pode cumprir.