BOI NEON

Boi neon

Embora sua ambientação um tanto distante para um espectador urbano possa fazer com que Boi Neon pareça à primeira vista uma aventura exótica, na verdade o que torna o ato de assistir esse filme numa experiência tão profundamente sentida e próxima é o fato dele conseguir soar tão familiar. Se essa familiaridade se constrói é porque, no centro dos interesses do filme, está justamente uma família. Não, claro, aquela família tradicional que alguns hipócritas ainda hoje, em pleno século 21, proclamam defender aos brados frente à abertura dos horizontes do sentido que esse termo pode ter, no seu melhor. A família em Boi Neon é imperfeita, cheia de ausências (como o pai de Cacá), constantemente em movimento (literalmente, no caminhão, mas também nas entradas e saídas de personagens de cena e nas formas como os papeis se reinventam a cada momento). É uma típica “família contemporânea”, uma família absolutamente única e inimitável – como todas, aliás.

De fato, embora esteticamente e no seu tom sejam cineastas completamente diferentes, há muito nessa estrutura cambiante e fluida das relações humanas no filme de Gabriel Mascaro que faz lembrar o cinema de Pedro Almodóvar. Aqui, como lá, os clichês se reinventam o tempo todo (o forte vaqueiro que quer ser estilista, a mulher vaidosa que dirige o caminhão, a vendedora de perfume que também é segurança), e ninguém é apenas uma coisa que o/a defina. Todos não apenas vivem, mas vivem e sonham suas vidas – o que ajuda a entender a forma como o filme parece entrar eventualmente em “transes” (as cenas de dança, a cena com o domador de cavalos etc). Essa talvez seja a grande contribuição que Mascaro traz para um filme que transita pelo interior do Nordeste, que mergulha num ambiente tão “terreno” como o da vaquejada: fazer com que ele não se esgote na descrição, na “realidade crua do Brasil profundo”, e sim conseguir ver como essa realidade é cheia de nuances e vida interna.

Na verdade, tudo isso até aqui dito poderia ser pouco mais do que muita teoria e palavras (espero) bonitas, mas o cinema é cruel como arte da seguinte maneira: todas essas ideias e conceitos podem ser desenvolvidos e, na tela, não conseguirem ganhar corpo. No fim das contas, se Boi Neon tem sido recebido com grande admiração e respeito por onde quer que tenha passado desde sua estreia internacional no Festival de Veneza do ano passado (de onde saiu com um prêmio especial do júri, mesma vitória repetida em seguida no igualmente influente Festival de Toronto, seguido da estreia no Brasil multipremiada no Festival do Rio, incluindo como melhor filme), é justamente porque consegue dar corpo a essas ideias. E que corpo(s)! Começando por um estupendo Juliano Cazarré (que constrói a delicadeza e a dureza de Iremar com iguais verdades), passando por Maeve Jinkings, um irreconhecível Vinicius de Oliveira (sim, o menino de Central do Brasil é aqui vaqueiro vaidoso que chega à família tardiamente) e finalmente os novatos Carlos Pessoa (Zé, muito mais que um alívio cômico) e Aline Santana (a menina que interpreta Cacá levou prêmio no Festival do Rio). Em cada corpo deles a câmera de Mascaro e do diretor de fotografia mexicano Diego Garcia (também fotógrafo do último trabalho do tailandês Apichatpong Weerasethakul) consegue chegar numa verdade pessoal profunda, com seu tempo e sensibilidade próprios. É aquele tipo de magia inexplicável do cinema que é difícil expor em palavras, mas impossível não ver na tela.

Eduardo Valente

É ex-aluno do curso de cinema da UFF, tendo editado as revistas de cinema Contracampo e Cinética. Assíduo frequentador do Cine Arte UFF, escreve alguns textos de introdução à reflexão sobre alguns filmes de nossa programação por acreditar que a formação de plateia é das maiores missões que um cinema como esse pode cumprir.

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